Uma caixa de sapatos no chão. Fotos espalhadas. O merlot
denuncia certa embriagues. É véspera de ano novo. Sozinho, ele vasculha o
passado de maneira a anular o presente. Se fosse possível a materialização da
solidão, certamente este seria o seu retrato. A toalha de banho, a taça de
vinho, a louça suja. Todas no singular existencial. Com certa dificuldade o
passado é recolhido. Agora é o cabernet quem o acompanha. A vista de sua varanda
não é uma das melhores, porém serviria para aquela noite. Do sétimo andar ele
observa os casais apaixonados. É o primeiro ano novo isolado. Há 365 dias a paisagem era doce. Há 364, a vida tornou-se amarga. Imprevisível.
Esta é a sua mais simples definição. A racionalidade trouxe-nos a saudade. E
esta o atormenta agora. Não que ele não a sinta em outros dias, mas hoje,
especialmente hoje, ela o aperta. A taça, já não mais usada, é jogada da
varanda. Em questão de segundos a gravidade mais uma vez cumpre o seu papel. Como
de costume, lágrimas. Foi ali que o sonho chegou ao fim. Daquela varanda, no
primeiro dia do ano, uma briga roubou a vida de alguém.
Fragmento d'Alma
Escrever é fragmentar o seu mais íntimo, distribuí-lo, compartilhando seus pensamentos ao próximo, ora indireta, ora diretamente. É deixar seu pouco para alguém.
quinta-feira, 29 de janeiro de 2015
quinta-feira, 25 de dezembro de 2014
Um conto de Natal
O sino da igreja central badala
doze vezes. É Natal. De longe se ouve o brindar das taças. Risos, votos,
presentes. Os hotéis centrais estão recheados de guloseimas. Hospedes conversam
na sacada. Faxineiros varrem o chão sujo de algo que a criança do 308 derrubou.
Votos de um Feliz Natal viram vírgulas, são pronunciados a cada expirar. É
comovente a forçada simpatia de todos. Dali a algumas horas estarão todos no
mesmo salão apreciando os croissants, queijos e sucos variados e nenhum bom
dia. O espírito natalino é preguiçoso com os demais, dura alguns minutos, nada
além.
Feliz
Natal, grita um bêbado ao volante. Da praça, no escuro, alguém escuta. Nenhuma
taça a acompanha. As roupas são as mesmas do último Natal, com alguns desgastes
a mais, claro. Os cabelos brancos denunciam um certo desleixo com os salões de
beleza. O rabo de cavalo improvisado devido à chuva confirma o primeiro
palpite. Suas expressões remetem ao sofrimento, mas por quê? Espera-se que,
especialmente nesta noite, todos estejam acompanhados daqueles quais se guardam
grande afeto. Então, por qual motivo estaria ali?
Alguém
se aproxima. A primeira diz algo. Abraços. Com um certo desconforto ele se
senta. Pensei que não viria. Está chovendo. Realmente, uma chuva forte. Sempre
chove. Já é Natal? Têm uns sete minutos. O tempo voa. Não mais para mim...
A
constrangedora conversa não dura mais que alguns minutos. É o tempo das
lágrimas e chuva se transformarem em um só líquido. Faz tempo. Cinco anos,
aqui. Até quando? Não sei.
Há
cinco anos, naquele banco, um tiro cortou os sonhos de alguém. Há quatro, este
mesmo encontro ocorre.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
Escada
Um dia nublado. Princípios de outono. Uma rua quase deserta.
Algumas crianças brincam ali. Infelizes, com essa idade eu já colhia café. Uma bola
atravessa o muro. É a terceira vez nesta semana. Tio, pega a bola? Folgados, se
ao menos eu pudesse levantar. É a terceira vez! Desculpe, pega a bola? Não me
vê aleijado? Posso entrar então? Ou entra ou espera o senhor teu Deus me
levantar daqui...
Dos oitenta outonos passados, este era o primeiro visto
sentado. Um tombo naquela maldita escada lhe rendeu alguns dias na UTI, meses
de fisioterapia e, obviamente, nenhum resultado. Você vai se recuperar papai. Quando
morrer, talvez. Não diga bobagens! As únicas bobagens são ditas por sua boca
nesse tal de Terço. Papai! Sempre ateu, orgulhava-se de nunca ter recorrido ao
Deus dos pecadores, nem mesmo no velório de sua finada esposa. Era contra todo
e qualquer tipo de fanatismo, embora fosse capaz de rir na cara de quem
proclamasse a Palavra. A bola, tio! Já mandei entrar.
Todos os dias no ultimo ano ele bebia o café às seis da
manhã, lia as imagens do jornal até às nove e meia, banheiro, varanda, almoço,
varanda, banho e cama. E todos os dias, no ultimo ano, ele amaldiçoava aquela
vida. Desgraçada, tirou-me tudo! Cadê o famoso senhor do universo? É assim que
trata seus amados filhos? Mas nem aí, nesta cadeira deixou de falar bobagens,
papai?
Tranco o portão, tio? Deixe-o aberto, quem sabe algum
assaltante entra e termina o serviço desta maldita escada. O senhor é
engraçado. E você, diabinho, inconveniente.
Um relâmpago corta o céu na mesma velocidade em que aquela
escada lhe cortou a vida. Embora rabugento, sempre teve momentos de alegrias,
como quando sua única filha nasceu. Sua finada viu naquele dia um esboço de
sorriso num rosto judiado pelo sol e pela vida. Órfão, viveu na casa de sitio
de sua tia mais velha. Ajudava no café e nas despesas. Aos sábados, feira. Domingo,
missa (era obrigado pela tia católica apostólica romana). Nunca acreditou. Deus,
ou seja lá quem for, nunca lhe deu motivos para tal. Era a ovelha desgarrada,
esquecida pelo bom pastor.
Chuva. Maldita chuva. As crianças ignoram o velho na varanda
e correm para suas casas. A filha, recém-aposentada, recolhe o pai, seca-lhe e
prepara algo quente para beber. Deus abençoe seus dias papai. Ele acena. É o máximo
que tem a oferecer. Velho, pobre e cadeirante. Sou um peso morto. Não papai, é
o peso mais confortável que já carreguei. O tempo esfria. Agasalhados, é hora
de se recolherem. Ela ora em silêncio pelos dois. Ele pede à vida, carregada de
vírgulas, um ponto final.
sábado, 6 de dezembro de 2014
Café
Pratos na mesa. Sonhos no
chão. Ela se cansou. Um jantar não resolveria os problemas dos últimos anos.
Não sou seu brinquedo. Ou não mais serei. Ela se cansou. Sim. Ela se cansou!
Cansou porque um dia você acorda e percebe que o príncipe encantado não existe;
que a roupa nova não supre uma carência antiga e, por pior que possa parecer,
que o mundo está recheado de corações vazios em belos corpos... Mas ela se
cansou principalmente porque necessitava se sentir mulher. As noites de falsos orgasmos
haviam chegado ao fim. Sim, ela fingia. Ele não era um bom amante. Muito menos
um companheiro. Honesto, mas machista, era o dono da verdade. Meu dinheiro,
minhas regras, minha mulher... Não sou tua, nem de ninguém. Sou minha, e isso
basta, porque completo-me. Não se atreva... Sim, me atrevo porque não lhe
pertenço. Sou independente, mulher e acima de tudo, livre. Sob meu teto, é
minha. Sob nosso teto, sou minha...
Ela nem se lembrava mais do cheiro, do toque, do sexo dele. Era o fim de algo declarado eterno. Eterno? Nada é eterno. Aceite. Tal como o café, a paixão esfria. Tal como o café, requentada, não libera o mesmo efeito. Não se conserta o cristal. Troca-se. E ela trocou. Um outro amante a tocou de tal maneira que os quartos vizinhos ao dela naquele motel sentiram inveja daquele gozo. Pernas bambas, corpo mole, estrelas... Ela conheceu seu limite, e gozou.
A princípio, o marido de nada suspeitou, mas o demônio da dúvida sussurrou algo em seu ouvido esquerdo e ele abraçou os sinais. A desgraçada não era mais a mesma. Vivia de sorrisos e perfumes. Ele havia perdido seu império...
Sonhos no chão. Era o fim. O limite havia sido alcançado e ela não o queria mais. Velas acesas, corações apagados. Está acabado. Recomeçar? Não, obrigada.
Ela nem se lembrava mais do cheiro, do toque, do sexo dele. Era o fim de algo declarado eterno. Eterno? Nada é eterno. Aceite. Tal como o café, a paixão esfria. Tal como o café, requentada, não libera o mesmo efeito. Não se conserta o cristal. Troca-se. E ela trocou. Um outro amante a tocou de tal maneira que os quartos vizinhos ao dela naquele motel sentiram inveja daquele gozo. Pernas bambas, corpo mole, estrelas... Ela conheceu seu limite, e gozou.
A princípio, o marido de nada suspeitou, mas o demônio da dúvida sussurrou algo em seu ouvido esquerdo e ele abraçou os sinais. A desgraçada não era mais a mesma. Vivia de sorrisos e perfumes. Ele havia perdido seu império...
Sonhos no chão. Era o fim. O limite havia sido alcançado e ela não o queria mais. Velas acesas, corações apagados. Está acabado. Recomeçar? Não, obrigada.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
Turning Tables
Um telefone batido. É a terceira vez que ele faz isso. No
rádio, Turning Tables. A vida precisa de uma reviravolta... O porquê de
continuar nessa relação? Ela não sabe. God only knows what we’re fighting
for... Três anos nisso. Ele sempre foi instável e ela submissa. Sempre. Under
your thumb, I can’t breathe. Mas ela estava cansada. A família o adorava, ela
também. Ele é trabalhador, tem dois empregos, luta para conseguir tudo, mas, o
principal, o companheirismo, ah, isso deixava a desejar. No começo ela
acreditava que iria mudá-lo. Tola! Não se ensina truques novos a cachorros
velhos. Com o tempo, ela percebeu que aquele homem não seria o último. Ela
tinha ciência da instabilidade dele mas o comodismo e a insegurança eram
fatais. I braved a hundred
storms to leave you... Mas hoje era o limite. Três toques e ele atende.
Ela chora, ele não. Isso precisa acabar! Você parece cansada, melhor
conversarmos amanhã. Eu não estou cansada, estou exausta! I can’t give you what
you think you gave me. São três anos! Você não precisa me lembrar, eu sei. Ela
realmente sabe, ele também. Três anos não são três meses mas ela precisa
arriscar. Eu já tentei de tudo e não dá mais, chega! E tudo aquilo que
planejamos? It’s time to say goodbye... Ela não se importa, planos são desejos
não concretizados. Você pode superar! To turning tables...
sábado, 29 de novembro de 2014
Pingo
Perdi meu amigo. Não aquele que estudou comigo. Muito menos aquele companheiro de trabalho... Não, perdi O amigo. Aquele que me conhecia como ninguém, que me esperava chegar da escola, do trabalho, das baladas... Perdi. O corpo pesava menos de cinco quilos, mas tinha uma agilidade... Nossas conversas eram baseadas no olhar. Ele me compreendia e eu reconhecia cada levantada de orelha. Hoje sinto falta de nossas traquinagens noturnas, da maneira como me fitava quando aprontava algo. Sinto falta do gosto da infância que ele me dava. Sim, gosto da infância. O recebi quando ainda era um menino inocente. Éramos dois pequenos num mundo de gigantes. Infelizmente cresci e ele continuou pequeno. Pequeno por fora, mas, por dentro, ah, por dentro ele era valente. Um leão. Corajoso, enfrentava tudo e todos. Era o meu herói. Entretanto não existem heróis. Não neste mundo. Não há espaço para eles. Morreu. Morreu como se morre. Um tumor. Um não, vários. Espalhados por todo o seu frágil corpo, atormentaram-o até o seu último suspiro. Não havia nada a se fazer. Muito velho para se operar. A saída? Eutanásia. Eutanásia? Não! Não tínhamos esse direito, não se brinca de Deus! Ou será que tínhamos? Olhá-lo ali, na lavanderia, seus olhos pedindo a morte, a morte! Quem implora pela morte? Ele implorou. Ou pelo menos acredito que sim. Mas fui covarde. Escolhi pela ordem natural da vida, do sagrado momento. Ali, na lavanderia, o vi dar o último suspiro. Não, não era o último suspiro dele, era o último suspiro daqueles pequenos num mundo de gigantes...
quarta-feira, 26 de novembro de 2014
Dois Estranhos
Dois estranhos. Uma mesa de bar e dois copos. O encontro? Marcado as escuras por amigos em comum. Um maço de cigarro sobre a mesa. Cinzeiro vazio. Ele detesta cigarro... Ela bebe whisky e ele curte beatles. Ela não. Ele brinda com suco natural de uma laranja diluída em dois quartos de água. Sem açúcar e duas pedras de gelo, claro. Ela gosta de cowboy. Precisam de algo? Não, obrigado, ele responde de prontidão. Ela sorri, ninguém toma decisões por mim. Uma porção de azeitonas por favor. Tem sódio, pressão alta. Eu prefiro correr o risco... Ela é loira. Ele usa 40. Mestrado em linguística é o objetivo dela. Ele prefere futebol. Corpos opostos. Ela não combina comigo mas preciso de uma foda. O celular de uma terceira vibra: ele é patético. Vai embora. Quero ver onde chega. E chega. Pelo menos pagou a conta. Te deixo em casa. Posso ir a pé. Eu insisto. Obrigada. Nada além...
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